Uma bala na agulha: uma perspectiva Junguiana sobre o complexo de armas assassinas

Uma bala na agulha: uma perspectiva Junguiana sobre o complexo de armas assassinas

Publicado por Anja van Kralingen

Traduzido por Deborah Jean Worthington, de https://appliedjung.com/a-bullet/

Oscar Pistorius atirou e matou sua namorada no dia dos namorados. Ele ficou arrasado e chorou incontrolavelmente em sua primeira aparição na corte e frequentemente em sua audiência de fiança. Seu depoimento afirma que ele acreditava que havia um ladrão em seu banheiro a quem atirou, apenas para perceber, horrorizado, que havia atirado em Reeva Steenkamp. Se sua versão dos fatos é verdadeira ou se, como afirma o Estado, o assassinato foi de fato intencional, permanece incerto. As opiniões diferem; esperamos que o processo pendente responda a algumas dessas perguntas, principalmente para a família de Reeva Steenkamp. De qualquer maneira, ocorreu uma tragédia que custou a vida de uma jovem e, com toda probabilidade, um jovem de sua carreira como um dos esportistas mais emocionantes e icônicos que surgiram da África do Sul. Sem mencionar o custo para a comunidade de atletas com “capacidades diferentes” e da África do Sul com um todo.

Considerar esse caso através das lentes da psicologia Junguiana oferece uma perspectiva única e esclarecedora sobre os eventos daquele dia fatídico.[1]  De uma perspectiva Junguiana, podemos dizer que Oscar tinha um “complexo de armas assassinas”, independentemente de ter ou não intenção de matar Reeva. Vejamos o que surgiu nas notícias [2] sobre este tiroteio:

  • seu pedido inicial de licença para armas foi rejeitado e, no momento do tiroteio, ele tinha 6 pedidos pendentes para uma variedade de armas
  • Ele quase atirou em um amigo em um restaurante enquanto olhava para a arma de outra pessoa
  • Seu anúncio da Nike foi intitulado “Bala na agulha”
  • Ele aparentemente mantinha a arma com ele o tempo todo
  • Ele disse ao New York Times que, quando um alarme de segurança da casa disparou recentemente, ele pegou a arma que mantinha perto da cama e desceu as escadas. Acabou sendo nada
  • em novembro, ele twetou sobre confundir sua máquina de lavar com um ladrão. (“Nada como chegar em casa para ouvir a máquina de lavar e pensar que é um intruso entrar em modo de combate completo na despensa!”, disse.

Observamos nesta lista uma série de fatos e situações aparentemente diversas que compartilham uma constelação temática. Eles convergem muito claramente sobre o tema de disparar uma arma e, como seria o destino nesse caso, matar alguém no processo.

Então, se é verdade, ele acordou e estava cheio de terror porque acreditava que havia um ladrão no banheiro; ou ele teve um colapso emocional devido a uma discussão; o fato é que seu complexo de armas o possuía. Queria atirar em alguém e o fez. O que acho que podemos dizer com um grau razoável de confiança é que o ato foi de insanidade temporária. É difícil (talvez impossível) vê-lo como um assassinato calculado a sangue frio. Pois, se foi de fato um ato de assassinato, também foi um ato de suicídio; Oscar podia muito bem ter se matado depois.

Os complexos aguardam para usurpar o ego em momentos de baixa consciência, ou seja, estresse emocional, fadiga, estar bêbado ou chapado etc.

Então, o que são complexos, de onde eles vêm e como se comportam?

Uma (muito) breve história dos complexos [3]

Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica, inicialmente chamou seu sistema de Psicologia Complexa. Vários eventos e interesses levaram Jung a investigar e desenvolver a teoria de que a psique humana é preenchida por complexos.

A primeira experiência real de Jung de um complexo neurótico ocorreu quando ele tinha cerca de 12 anos de idade. Ele foi derrubado e perdeu a consciência durante uma briga no parquinho. O resultado foi que ele foi enviado para casa e percebeu que essa era uma maneira eficaz de evitar ir à escola.

Posteriormente, ele teve uma série de “desmaios” quando necessário, para fazer a lição de casa ou ir para a escola. No entanto, ele ouviu o pai falando com alguém sobre esse assunto e como eles estavam preocupados com sua capacidade de se sustentar quando ele fosse mais velho. Isso o fez perceber o quão importante eram seus estudos e ele decidiu corrigir essa neurose, forçando-se a estudar latim. Ele finalmente conseguiu parar os desmaios. Essa experiência despertou seu interesse inicial na psique e no poder da mente sobre o corpo físico.

A perspectiva espiritual

A mãe de Jung era considerada psíquica e médium. Ela costumava falar com uma voz diferente e tinha acesso a conhecimentos diretamente desconhecidos para ela. Isso teve um impacto profundo em Jung, que, quando jovem, alimentou a idéia de que ele tinha outra personalidade vivendo dentro dele.

Jung escreveu sua dissertação em 1902 sobre sua prima Helen Preiswerk, que era médium e realizou muitas sessões. Helene também costumava falar como alguém diferente chamado Ivenes, que era mais inteligente e maduro. Esse foi o fundamento do trabalho posterior de Jung sobre a segunda personalidade e individuação. Isso também despertou seu interesse e pesquisa sobre complexos, e sua crença de que os complexos eram personalidades autônomas na psique.

Os anos como aluno e os primeiros trabalhos

Jung estudou medicina e ficou cada vez mais interessado em psicologia. Durante seus estudos, ele foi exposto a “Psychopathia Sexualis” por Richard von Krafft-Ebing. Além disso, Pierre Janet e seu conceito de Abaissement du niveau mental, “A interpretação dos sonhos” de Freud, “Da Índia ao planeta Marte”, de Théodore Flournoy, e “O visionário de Prevorst”, de Justinus Kerner, despertaram seu interesse e influenciou seu desenvolvimento subsequente de teoria dos complexos.

Aos 25 anos, Jung começou a trabalhar no Burghölzli, um renomado hospital psiquiátrico em Zurique. Enquanto estava em Burghölzli, ele pesquisou e publicou seu trabalho sobre o Word Association Test.

Inicialmente inventado por Sir Francis Galton em 1879, Jung percebeu a eficácia desse teste e o elaborou e desenvolveu consideravelmente. Este teste identificou áreas na psique dos pacientes onde havia uma neurose.

O teste consistiu em várias palavras pré-selecionadas aleatoriamente lidas para o paciente. O paciente era obrigado a responder a cada palavra lida para eles, com uma palavra diferente de sua própria escolha. Jung estabeleceu que qualquer reação emocional ou física, mas também o atraso na resposta, indicava que havia um complexo neurótico ativo em relação à palavra lida.

Então, o que é um complexo, afinal?

Jung deixou um conjunto abrangente de trabalhos sobre complexos. Suas pesquisas e trabalhos sobre complexos resultaram em um teorema denso que está bem documentado.

Os principais pontos [4] em relação aos complexos são os seguintes:

  • Um complexo é um agrupamento de emoções, crenças, ideais, imagens em torno de uma idéia específica. Esses complexos povoam a psique e podem ser (parcialmente) conscientes ou inconscientes.
  • Complexos surgem como resultado de uma divisão na psique. Essa divisão pode ser causada por trauma, mas na maioria das vezes é o resultado de uma divisão moral. Isso acontece quando o sujeito tem um conflito interno em relação a um evento. O ser humano é incapaz de assimilar ou entender uma situação e esse dilema resulta em uma divisão. Conscientemente, há uma posição, mas inconscientemente, há outra posição.
  • Os complexos podem ser conscientes ou integrados à consciência, por exemplo um talento. Alternativamente, eles podem ser inconscientes e desconhecidos para a consciência do ego.
  • Os complexos inconscientes têm seus próprios objetivos e intenções que se opõem ao ego consciente. Esses complexos são autônomos e impõem sua influência sobre a consciência do ego, o que afeta e influencia a capacidade da consciência do ego de tomar decisões e dessa forma, desafia a autonomia do ego.
  • Esse problema prenderá o sujeito, não permitindo que ele o deixe ir. O sujeito ficará preso no problema e não conseguirá prosseguir ou resolver o problema
  • Um complexo psicótico domina totalmente o ego e o sujeito não será capaz de funcionar normalmente na sociedade; pelo menos não enquanto estiver nas garras desse complexo.
  • Complexos usurpam o poder do ego quando a consciência é rebaixada. A consciência diminui quando uma pessoa é submetida a altos níveis de estresse, exaustão física, agitação emocional, embriaguez ou drogas. Quando a consciência é reduzida/rebaixada, o complexo faz um esforço e se expressa dizendo coisas inapropriadas ou exibindo comportamento inapropriado. O ego muitas vezes permanece inconsciente do comportamento, bloqueando-o imediatamente ou esquecendo o que aconteceu. Mas se for lembrado, o sujeito ficará confuso sobre o porquê de se comportar dessa maneira. Eles não assumem a responsabilidade pelo comportamento e o culpam como um evento externo ou costumam dizer que não eram eles mesmos. Nas culturas primitivas, esse tipo de circunstância/ experiência, costumava ser referida como “possuído”.
  • A identificação de um complexo pode ser alcançada conscientizando-se das respostas e projeções emocionais dos sujeitos. Quando há uma resposta emocional a um indivíduo ou organização, o sujeito está projetando seu próprio conteúdo inconsciente na parte externa. Esta é uma boa indicação de que há um complexo presente. O complexo também pode se apresentar através de fantasias e sonhos.
  • Complexos inconscientes podem ser integrados à consciência se identificados, aceitos, articulados e assimilados. Ao se tornar consciente dos complexos ativos em sua própria vida, a projeção sobre o outro é removida. Esse processo de conscientização fundamentou as teorias posteriores de Jung na individuação.

A dedicação de toda a vida de C.G. Jung ao desenvolvimento de sua teoria sobre complexos, deu uma contribuição significativa ao campo da psicologia. Essa teoria dos complexos se transformou em um sistema com o qual podemos explorar nossa própria psique e também oferecer ferramentas que tornam a transformação uma possibilidade real, tornando-se conscientes de quem realmente somos. [5]

Aplicando essa teoria à própria vida.

Em termos simples, como um professor meu gostava de dizer, não somos mestres em nossa própria casa. Isso não sugere que nós (ou Oscar, neste caso), não assumamos responsabilidade por nossas ações. Isso seria ir longe demais, isso é um absurdo.

A frase antiga … “O diabo me fez fazer isso”

que muitos patifes usaram como última linha de defesa, não anulam o referido indivíduo de responsabilidade.

No entanto, há algo a fazer. Nossas mentes abrigam alguns anjos, se somos bastante abençoados e, quase sem dúvida, uma pluralidade de demônios. Esses personagens agirão por si mesmos, literalmente, e não raramente a agenda deles será completamente contrária à nossa agenda consciente.

Reconhecer esta verdade desconfortável sobre si mesmo é um bom ponto de partida. A imagem da sua mente sendo composta de muitas pequenas ilhas (cada ilha sendo um complexo) ao redor de uma ilha central, sendo o ego, é uma maneira útil de imaginar isso. Sua psique não é tão unificada quanto você pode acreditar. Com esse reconhecimento, o processo de identificação desses complexos pode começar. Identificar e entrar em um diálogo interno com eles [6] é um tempo bem investido. Muito melhor do que o alto preço de tê-los inconscientemente direcionando sua vida. Embora o caso Oscar Pistorius seja dramático, e nem todo mundo abrigue necessariamente complexos violentos ou assassinos, é ilustrativo de como o complexo desacompanhado, inconsciente ou reprimido pode tomar as rédeas.  E, ao fazer isso, pode levá-lo a um caminho que você pode não ter escolhido em um estado de espírito mais lúcido e coerente.

[1]ao fazer tal análise, naturalmente corre-se o risco de erro e especulação. Nós aceitamos isso. Esta análise não pretende ser a palavra final sobre o assunto ou mesmo a maneira mais correta ou melhor de interpretar esses eventos. Em vez disso, a afirmação mais modesta de que essa análise é útil, tanto para esclarecer o que pode ter ocorrido quanto para fornecer algumas dicas sobre nossos próprios “complexos assassinos” potenciais.

[2] embora tenham sido feitas todas as tentativas para transmitir com precisão as informações que surgiram, naturalmente contamos aqui com a exatidão das próprias reportagens. Como tal, nenhuma alegação é feita pelo escritor quanto à precisão desses relatórios, apenas que eles apareceram nas notícias em conexão com este incidente.

[3] ou, mais precisamente, uma breve história da teoria dos complexos.

[4] Mas de nenhuma maneira trata-se de uma lista completa.

[5] Bibliografia:

Samuels, A., Shorter, B., Plaut, F., 1986, Um dicionário crítico de análise junguiana, Londres, Routledge

Jung, C.G., 1963/1995, Memórias Sonhos e Reflexões, Londres, HarperCollins

Jung, C.G., 1966/1993, vol. 16, Londres, Routledge

Jung, C. G.1969 / 2008, vol. 8, Londres, Routledge

Crovitz, H. F., 1970, A caminhada de Galton: métodos para a análise do pensamento, inteligência e criatividade, New York, Harper & Row
Hayman, R .; 1999/2003, A vida de Jung, Londres, Bloomsbury

[6] observe que, entre em um diálogo interno, não o reprima, pois é uma ideia decididamente ruim. O que você está procurando aqui é um acordo negociado entre você como o ego, e o complexo.

Share this post

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *