O Barba Azul e suas várias camadas de significação

O Barba Azul e suas várias camadas de significação

Por Denise Maria Osborne

Traduzido por Deborah Jean Worthington, de http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/entretextos/article/viewFile/15567/16177

RESUMO: Este artigo desafia a posição assumida por alguns especialistas da área dos contos de fadas de que os críticos os interpretaram erroneamente (ZIPES, 2007). Afirmo que não se pode ter certeza da intenção do narrador e que os significados transmitidos por um conto de fadas podem ser construídos de diferentes maneiras (NODELMAN; REIMER, 2003). Apoios para este argumento vêm da análise de Barba Azul (PERRAULT, 2002) de diferentes perspectivas: histórica (ZIPES, 2006), feminista e junguiana, (por exemplo, ESTÉS, 1995), freudiana (por exemplo, BETTELHEIM, 1977) e lacaniana (HERMANSSON, 2009). São exploradas as discussões sobre as várias camadas de significado que essas abordagens podem transmitir. Concluo mostrando que o Barba Azul, uma obra de arte complexa, é notável por sua contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Barba Azul. Contos de fadas. Significados.

Introdução

Desde a primeira publicação de Barba Azul em 1697 por Charles Perrault em Histoires ou contes du temps, este poderoso conto de fadas fascinou e intrigou gerações. Embora haja alguma especulação de que o Barba Azul de Perrault foi baseado em fatos (por exemplo, Cunmar, o Maldito, que decapitou sua esposa grávida; Gilles de Rais, que assassinou centenas de crianças) (TATAR, 2002, p. 145), o Barba Azul “permanece uma construção de fantasia coletiva, uma figura firmemente ancorada em o reino do folclore ”(p. 146).

Na medida em que os contos de fada estão conosco há milhares de anos, eles passaram por muitas mudanças e “é difícil determinar a intenção ideológica do narrador” (ZIPES, 2007, p. 6). Neste artigo, exploro as diferentes abordagens que o Barba-azul teve de uma gama de perspectivas diferentes (por exemplo, abordagens históricas, psicológicas e feministas). O artigo começa discutindo as características dos contos de fadas em Bluebeard (NODELMAN; REIMER, 2003), onde os personagens, cenários e estrutura da história são combinados de forma a induzir o espanto. As várias camadas de significados que o Barba Azul pode trazer são exploradas, revisando as contribuições de especialistas em contos de fadas (por exemplo, ZIPES, 2007), bem como por acadêmicos na área da psicologia (por exemplo, BETTELHEIM, 1977). Também incluo leituras de uma perspectiva junguiana (por exemplo, ESTÉS, 1995), em que os contos de fadas são representações do arquétipo da mulher selvagem.

Concluo mostrando que o argumento apresentado por alguns especialistas de que os críticos “mistificaram e interpretaram mal o conto de fadas” (ZIPES, 2007, p. 1) não se sustenta, pois não podemos saber ao certo qual é a intenção do narrador, nem nós podemos limitar os diversos significados veiculados pelos contos de fadas (NODELMAN; REIMER, 2003).

Características dos contos de fadas no Barba Azul

A forma como uma narrativa é organizada nos dá pistas para compreender e interpretar o texto (BLACK, 2006). De acordo com Nodelman e Reimer (2003), somos capazes de reconhecer um conto de fadas porque ele possui certas características que são peculiares a este gênero (por exemplo, o local e o tempo nos contos de fadas são uma combinação do mundo real e fantasia; e polaridade dos personagens: eles são bons ou maus). Embora o Barba Azul seja uma história de terror, sabemos que não é real porque existe um elemento de magia: a chave sangrenta. A forma como o texto começa também sinaliza um conto de fadas: “Era uma vez um homem que …”) (PERRAULT, 2002, p. 147). Esses elementos que caracterizam os contos de fadas no Barba Azul são discutidos criticamente na seção abaixo.

Configuração

A história de Bluebeard (PERRAULT, 2002) começa como “Aqui uma vez viveu um homem que possuía grandes casas …” (p. 147), mostrando que a hora e o local não são precisos. É antes uma época e um lugar imaginários, onde luxuosos castelos são preenchidos com ouro e prata, e ricos e pobres fazem parte deles. A atemporalidade e a localização não especificada criam conotações utópicas (ZIPES, 2007, p. 4), que cativam a imaginação dos leitores. Em geral, os contos de fadas começam com imprecisão (por exemplo, Era uma vez, Numa época em que os animais ainda falavam), o que indica que “estamos deixando o mundo concreto da realidade comum” (BETTELHEIM, 1977, p. 62). É interessante notar que também podemos sair do mundo da “realidade concreta” ao ler outras formas de arte, como a literatura do realismo mágico. Em Cem anos de solidão (1971), de Gabriel Garcia Márquez, por exemplo, há elementos que podem ser vistos como contos de fadas ao longo de seu romance (por exemplo, há um personagem que sobe ao céu). Márquez também inicia o livro referindo-se a um começo vago dos tempos: “[…] quando o mundo era tão recente que muitas coisas não tinham nomes … ”(p. 11).

Personagens

Os personagens dos contos de fadas são definidos como bons ou maus. Desde o início, os leitores são capazes de reconhecer quem é o herói ou heroína e quem é o vilão. Bluebeard começa com uma descrição de como o Bluebeard é rico, cercado por ouro e tapeçarias finas. No entanto, encontra o infortúnio: “Mas esse homem também teve o azar de ter barba azul” (PERRAULT, 2002, p. 147).

Por causa da barba azul, ele é considerado feio e as mulheres têm medo dele: “tanto as mulheres quanto as meninas fogem ao vê-lo” (p. 147). A barba azul apresenta um elemento exótico ao personagem; ela nos diz que há algo fora do comum, algo não muito certo nessa imagem.

Apesar de sua figura assustadora, “uma mulher respeitada que morava perto” (PERRAULT, 2002, p. 147) e suas duas filhas aceitaram seu convite para ir a uma festa em sua casa. Depois de ver como ele era rico, a filha mais nova “começou a pensar que a barba do senhor feudal não era tão azul assim e que ele era de fato um bom sujeito” (PERRAULT, 2002, p. 148). Ela então se casou com ele. O conto de fadas apresenta a heroína: uma jovem que fica intrigada com este homem rico. Ela é inocente e ainda não aprendeu a reconhecer um predador. Ela acaba fazendo a escolha errada de se casar com o homem errado: “Que mulher não reconhece esse cenário?” (ESTÉS, 1995, p. 46)

A bondade em um personagem é definida por situação, não por ação (NODELMAN; REIMER, 2003). A filha mais nova estava em uma posição de vulnerabilidade, de ser abusada, de estar em perigo. Ela é, portanto, boa. Além disso, nos contos de fadas, não fazer nada confirma a bondade do personagem (por exemplo, a Bela Adormecida, que apenas dorme).

Depois de definir quem é bom e quem é mau, os contos de fadas continuam de uma forma que deve sustentar nossas suposições iniciais sobre os personagens ao longo de toda a história: aqueles que são bons continuam bons; aqueles que são maus permanecem maus, independentemente do que façam. O fato de a filha mais nova e sua mãe estarem apenas interessadas na riqueza do senhor, por exemplo, não é relevante e não afeta a forma como vemos a heroína. Os papéis dos personagens podem ser considerados estáveis ​​(NODELMAN; REIMER, 2003, p. 315).

Outra característica dos personagens de contos de fadas citada por Nodelman e Reimer (2003) é que para preencher o papel de herói ou heroína, o personagem precisa estar em uma posição inferior, ou possuir menos poder, em relação ao personagem do mal. Barba-azul é um homem mais velho, rico e poderoso, enquanto sua esposa é de um estrato social inferior e é jovem e inocente.

Essa maneira direta de retratar personagens (bons ou maus) é vista pelo psicólogo infantil Bruno Bettelheim (1977) como uma forma simbólica de ajudar as crianças no desenvolvimento de sua personalidade: Os personagens dos contos de fadas introduzem às crianças a ideia de que existem coisas boas e pessoas más, e esse alguém tem que fazer uma escolha sobre quem ele ou ela quer ser. Como os personagens dos contos de fadas não são ambivalentes, mas sim definidos em termos de polaridade (bem versus mal), a criança pode compreender facilmente a diferença entre os dois; algo que é muito mais difícil de fazer dadas as complexidades que caracterizam as pessoas reais.

É interessante notar que os adultos continuam usando a polaridade como uma forma de caracterizar elementos em suas vidas como sendo “bons” (nós) ou “maus” (eles), bem como uma forma de justificar suas ações (por exemplo, no Anos 80, o presidente Reagan aplicou o termo império do mal em referência à ex-União Soviética; em 2002, o presidente George W. Bush usou o termo eixo do mal para se referir ao Irã, Iraque e Coreia do Norte, que foram governos que ele acusou de ajudar terrorismo).

Um padrão básico de história

O mal tem sua atração (por exemplo, Barba Azul é um homem rico e poderoso que vive em um castelo cercado por ouro e prata). O mal também está em ascensão no início dos contos de fadas. No entanto, sendo os contos de fadas o que são, sabemos que o mal será derrotado no final. O caminho do herói de uma posição de impotência para uma posição de poder é um padrão típico de conto de fadas. Para Bettelheim (1977), as crianças são atraídas pelo herói ou heroína porque se identificam com o herói e suas lutas. Os filhos sofrem com o herói e, no final, os filhos triunfam com ele. Segundo Bettelheim, os contos de fadas têm um impacto positivo no desenvolvimento psicológico das crianças porque, entre outros motivos, no final dos contos de fadas, o herói é recompensado, enquanto o personagem maligno recebe a punição merecida, “satisfazendo assim a profunda necessidade da criança de que a justiça prevaleça” (p. 144) (por exemplo, em um nível inconsciente, a criança aprende que, apesar de todos os seus problemas , coisas boas virão no final).

Bettelheim (1977) argumenta que os contos de fadas têm um impacto no desenvolvimento psicológico das crianças em um nível inconsciente. A criança segue as lutas do herói nas quais ele ou ela ganha maturidade. Por meio dos personagens, a criança se projeta e compreende suas próprias lutas e processos de crescimento, embora a criança não tenha consciência desses processos internos. A esposa de Barba Azul passa por um processo de maturidade: no início de sua vida no castelo, ela tinha tudo o que o dinheiro podia comprar. Sua vida era estável e previsível. Quando ela abre a porta proibida, ela permite que uma mudança comece em sua vida, mesmo que ela não saiba o que está atrás da porta. Ela perde sua inocência, mas ganha conhecimento. É um processo doloroso que quase lhe custa a vida. Este processo de desenvolvimento do princípio do prazer ao princípio da realidade (p. 43) conta às crianças sobre o seu próprio desenvolvimento, sem realmente falar sobre ele.

No entanto, existem outras abordagens para contos de fadas que levantam questões sobre a suposição de seu impacto positivo em nossas vidas: Em nosso mundo real, o bem nem sempre vence e, muitas vezes, é muito difícil atribuir puro “bom” e puro ” mal ”para ambos os lados de um conflito. Além disso, os contos de fadas podem causar confusão entre realidade e fantasia. A abordagem feminista, por exemplo, argumenta que uma leitora ingênua de contos de fadas “apóia o paradigma da impotência feminina e da dependência de agentes externos para resgate no mundo real” (NODELMAN; REIMER, 2003, p. 317). Nem todas as abordagens feministas dos contos de fadas parecem compartilhar essas idéias. Estés (1995), por exemplo, vê os contos de fada como uma descrição simbólica da mulher em reconexão com sua natureza instintiva, que ela chama de mulher selvagem.

Para ela, os contos de fadas são histórias que inspiram as mulheres a recuperar sua energia e sabedoria, conectando-as à sua verdadeira natureza.

0Barba Azul em contraste com outros contos de fadas canônicos

Os contos de fadas começam com uma situação infeliz em casa (por exemplo, Cinderela) e terminam com um casamento que durará para sempre. Em Bluebeard, a história começa com uma jovem saindo da segurança de sua casa e se casando com um homem rico, o que foge do tradicional conto de fadas. O casamento não é visto como uma vida feliz para sempre. Bluebeard é “mais um conto preventivo sobre o casamento do que uma celebração da felicidade conjugal” (TATAR, 2002, p. 145). Para o tártaro, essa “história pode ter servido como uma fábula de advertência para as moças contra o casamento com homens ricos com um passado” (p. 156).

Camadas de significados

Embora os contos de fadas possam ter diferentes interpretações, a maioria dessas abordagens parece ter algo em comum: a visão de que os contos de fadas são uma representação simbólica da realidade. Para Estés (1995), muitas mulheres viveram a história do Barba Azul: Ainda muito jovens e ingênuas, elas se casaram com alguém destrutivo em suas vidas. E, embora eles pudessem ver que a barba é azul, eles podem ter passado muito tempo dizendo “Sua barba não é realmente tão azul” (p. 50).

Bluebeard está cheio de elementos simbólicos. Na próxima seção, exploro algumas das possíveis camadas de significados que podemos extrair dos principais elementos desse conto de fadas.

Figura 1 – Uma ilustração do século 19 de Barba Azul, sua esposa e a chave de Gustave Doré. Os olhos da esposa fixos na chave revelam sua atração pelo proibido, enquanto o de Barba Azul olhos transmitem ameaça.  Fonte: Tatar (2004, p. 28)

A chave

A parte mais fascinante do Barba Azul ocorre quando a esposa abre a porta do quarto proibido. A esposa desobedeceu ao marido que lhe deu as chaves e disse que ela estava proibida de entrar em um determinado quarto pequeno. Alguém pode pensar que, se o Barba-azul não queria que sua esposa entrasse naquela sala, por que ele deu  a ela  a chave? Uma suposição é que, de fato, ele esperava que ela desobedecesse. Ela era jovem e ele, sendo um homem mais velho e maduro, saberia que ela estaria curiosa sobre o quarto proibido. Minha leitura é que o Barba-azul se casa com a esposa tendo em mente sua futura execução.

Por outro lado, pode-se argumentar que a chave representa um teste de fidelidade e obediência. Estés (1995) argumenta que o Barba-azul dá à esposa uma falsa sensação de liberdade quando ele diz que ela poderia entrar em qualquer quarto e que ela poderia convidar sua família e amigos para ficarem com ela enquanto ele estiver fora. No entanto, ela não é realmente livre porque sempre existe a sala proibida: a chave é um lembrete disso.

Quando a esposa abre a porta e vê vários corpos de mulheres pendurados nas paredes e o chão coberto de sangue, ela fica com tanto medo que deixa cair a chave no sangue. Ela então pega a chave e sai. Ela tenta limpar a chave, mas o sangue na chave não desaparece. A chave está sangrando.

A chave pode ser vista como um sinal de desobediência ou transgressão; também pode ser visto como um sinal de que não se deve confiar no marido (TATAR, 2002, p. 151).

Estés (1995) refere-se à chave como a chave do saber (p. 50) porque essa chave daria consciência à esposa. Ela poderia escolher não abrir a porta e viver como uma jovem ingênua, seguindo as regras de seu marido. Em vez disso, ela escolheu abrir a porta da verdade.

A chave está encantada e não para de sangrar: Para Bettelheim (1977), o Barba Azul pode ser considerado um conto de fadas apenas por causa da chave que está sangrando. Caso contrário, teria sido apenas uma história de terror monstruosa. Bettelheim vê a chave como associada ao órgão sexual masculino, “particularmente a primeira relação sexual, quando o hímen é rompido e corre sangue” (p. 301). Em outras palavras, o sangue simboliza que a mulher teve relações sexuais. Para Bettelheim (p. 302), o sangue na chave é uma representação da indiscrição sexual da esposa. O marido ciumento parece acreditar que a esposa merece um castigo severo.

Antes de partir, o Barba-azul avisa a esposa que “se você abrir [a porta] ao menos uma fresta, nada vai te proteger da minha ira” (PERRAULT, 2002, p. 150). Embora a esposa saiba que desobedeceu ao marido e que haverá algum tipo de punição, ela não sai do castelo nem procura ajuda. Ela não confia em sua irmã Anne. Pelo contrário, sua intenção é fingir que nada aconteceu. Para Bettelheim (1977, p. 301), seu comportamento sugere duas possibilidades: o que ela vê na sala proibida é a criação de suas próprias fantasias ansiosas, ou que ela traiu o marido e espera que ninguém descubra.

Por outro lado, Estés (1995) vê o ato de desobedecer como fundamental para a busca da verdade. A porta é uma barreira psíquica. Quando a esposa abre essa porta, ela perde sua inocência. Ela conhece a verdade e assim começa sua maturidade. A chave não para de sangrar; a jovem esposa não pode retornar à sua natureza ingênua.

“Quando ela percebeu que a chave do quarto estava manchada de sangue, ela limpou duas ou três vezes, mas o sangue não foi embora” (PERRAULT, 2002, p. 151). Ver a verdade é doloroso. Um sangra. Um perde energia. É preciso parar a dor, tentar voltar ao estágio inicial, onde não havia dor.

Barba-azul volta inesperadamente de sua viagem: “Sua esposa fez de tudo para que parecesse estar encantada com seu retorno antecipado” (PERRAULT, 2002, p. 152). Uma mulher pode esconder a devastação em sua vida e fingir que está tudo bem; entretanto, a chave sangrando estará lá como um lembrete do que está na sala secreta. Depois de ver a câmara da morte, não se pode fingir que ela não existe. Nesse sentido, o sangue também representa vida e energia. Estés (1995) argumenta que após entrar na sala e conhecer a verdade, a esposa ingênua começa a morrer, mas uma nova vida também floresce.

Philip Lewis (HERMANSSON, 2009) dá uma interpretação lacaniana da chave no Barba Azul. Para ele, a chave oferecida à esposa pelo Barba Azul representa a sua superioridade (ele tem conhecimento e a esposa é excluída) e inferioridade da esposa (ele e a esposa não são o mesmo). O sangue na chave indica que agora ela também tem conhecimento; ela havia apagado a diferença entre eles, e o conhecimento do Barba-azul agora é dela. Barba Azul se recusa a reconhecer sua construção de identidade. Para marcar a diferença entre eles, o Barba-azul tem que matar sua esposa, o que marcaria o retorno da esposa ao estágio anterior. Para Lewis, a chave tem dois lados porque, ao mesmo tempo, ela “revela crimes paralelos (assassinato; descoberta de assassinato), combinando ainda mais a diferença em suas identidades na mesmice” (p. XVII).

A chave masculina

Zipes (2006) assume uma posição diferente sobre o Bluebeard. Para ele, Perrault pegou motivos do folclore francês e criou esta história1 para debater a dominação masculina e o papel dos homens e mulheres durante o reinado de Luís XIV. Para Zipes, para entender o Barba Azul, é preciso entender o contexto sócio-histórico da época. No século XVII, a França teve vários escritos de homens sobre os papéis sexuais e sociais das mulheres e os temores masculinos do crescente poder das mulheres.

O Barba Azul reflete “uma grande crise da falotocracia” (p. 163). Por exemplo (p. 162), ao ordenar que sua esposa não abra a sala, o Barba Azul mostra seu poder e controle. Nesse sentido, o segredo não existe; não há segredo. O Barba Azul, como todos os homens, não tem poder, é impotente e não controla as mulheres. Para ter uma sensação de poder, os homens aplicam a manipulação para controlar suas esposas e filhos. Zipes argumenta que, ao cancelar o conhecimento da esposa sobre o poder, os homens mantêm o mito do poder superior. Ele argumenta que os motivos para a superioridade masculina não têm fundamento, e isso é algo que perturbou Perrault e outros escritores do século XVII. (Pode-se querer expandir esta interpretação para outros tipos de relações de poder desequilibradas, como a forma como os ditadores impõem seus próprios pontos de vista sobre suas sociedades e isso se torna a norma.)

Em Bluebeard, a esposa é salva por outros homens (seus irmãos). Mais tarde, ela se casou novamente, com “um homem muito digno, que a ajudou a apagar a memória dos dias terríveis que ela havia passado com o Barba-azul” (PERRAULT, 2002, p. 156). Zipes (2006) argumenta que, do ponto de vista masculino, as mulheres têm duas escolhas: “ou encobrir sua descoberta da impotência masculina e aceitar seu papel civil de domesticidade […] ou devem calcular como agir para se salvar quando o homem calcula mal seu poder ”(p. 165).

A sala

“No início ela não conseguia ver nada, pois as janelas estavam fechadas. Depois de alguns minutos, percebeu que o chão estava pegajoso de sangue coagulado […] ”(PERRAULT, 2002, p. 151). A esposa poderia ter escolhido obedecer ao marido e permanecer ingênua. Em vez disso, ela segue sua intuição e opta por correr o risco. A porta do quarto proibido separa suas duas personalidades: aquela que é a esposa obediente e não questiona a ordem; e o outro, que representa aquele que transgride para descobrir a verdade. Escolher obedecer ao predador significaria escolher a morte. Escolher abrir a porta é escolher a vida e representa o início de uma mudança interior. Porém, essa mudança interna não é fácil: “A princípio ela não via nada” (PERRAULT, 2002, p. 151). Encarar a verdade é difícil; demora um pouco para que a verdade seja assimilada. A esposa, porém, permanece na sala. Como aponta Estés (1995, p. 53), “a capacidade de suportar o que vê possibilita à mulher retornar à sua natureza profunda”, ou seja, seu verdadeiro eu.

O Barba Azul simboliza o predador, o homem escuro que inibe e controla as mulheres. Todas as mulheres devem aprender que existem predadores: este é o primeiro passo para poder se proteger de saber negociar e escapar do perigo. (No Barba Azul, a esposa pede a ele um tempo para orar. Dessa forma, ela ganha algum tempo, que permite que seus irmãos venham e salvem sua vida.) O personagem do Barba-azul também pode ser visto como uma representação de obstáculos que forçam as mulheres a fazer escolhas difíceis: permanecer ingênua ou encarar a verdade.

Mulheres e curiosidade

Na versão de Perrault, há uma grande ênfase na desobediência da esposa. Perrault optou por destacar o ato de insubordinação. Sua versão do Barba Azul, por exemplo, termina com um pequeno poema que diz que a curiosidade sempre “custa caro” (TATAR, 2002, p. 156). O ato de desobedecer para conhecer a verdade nos remete a figuras bíblicas e mitológicas, como Pandora, que abre sua caixa, liberando assim os males do homem; e de Eva, que prova o fruto proibido e, por isso, a humanidade tem que pagar um preço alto.

Bluebeard viajou e deixou todas as chaves com a esposa, incluindo a chave do quarto proibido. A esposa, porém, “era atormentada por sua curiosidade” (PERRAULT, 2002, p. 151). Ela deixa os convidados em sua casa e desce correndo as escadas “tão rápido que mais de uma vez teve medo de quebrar o pescoço” (PERRAULT, 2002, p. 151). Perrault enfatiza a curiosidade da esposa de uma forma negativa. Muitas dramatizações do Barba Azul no século XIX tinham legendas, como The Consequences of Curiosity ou The Hazards of Female Curiosity (TATAR, 2002, p. 154). Estés (1995) argumenta que a curiosidade das mulheres teve uma conotação negativa e a banalização da curiosidade das mulheres nega-lhes insights e intuições (p. 51). O que o Barba Azul nos diz é que a curiosidade natural da esposa a leva à descoberta do que está além da aparência das coisas, trazendo conhecimento e consciência para si mesma.

Estés (1995) vai além em sua interpretação. Para ela, quando uma mulher sai de seu estágio de ingenuidade, ela ganha uma energia masculina interna chamada animus. Na psicologia junguiana, o animus aparece nos contos de fadas e símbolos oníricos como marido, amante, filho, estranho, etc. Pode ser um conforto ou uma presença ameaçadora, dependendo das circunstâncias psíquicas da mulher. Segundo Estés, a energia masculina do Barba Azul é simbolizada pelos irmãos da esposa, que vêm matar o marido e salvá-la. Uma mulher com animus pouco desenvolvido é incapaz de manifestar suas idéias e materializar seus pensamentos. A mulher que possui animus, por outro lado, é capaz de realizar seus objetivos. Após a morte do Barba-azul, sua esposa assume o controle de sua vida: “[…] sua esposa conseguiu se apossar de toda a sua fortuna. Ela usou um pouco para casar  a irmã […]. O resto ela se casa com um homem muito digno […] ”(PERRAULT, 2002, p. 156).

Conclusão

Bluebeard é um conto de fadas complexo com uma gama de interpretações intrigantes. Uma abordagem feminista vê o Barba Azul como uma história de violência doméstica e castigo corporal de esposas. Uma visão junguiana vê o Barba Azul como um predador da psique; nessa visão, toda mulher tem que aprender a lidar com esse predador interno para desenvolver uma relação com seu verdadeiro eu ou, como afirma Estés (1995, p. 43), “uma relação com a natureza selvagem” das mulheres.

Em uma interpretação freudiana, Barba Azul fala sobre indiscrição sexual e a raiva de ser sexualmente traído. Do ponto de vista lacaniano, o Barba Azul trata do poder e da recusa em compartilhar o conhecimento. Zipes (2006), por outro lado, fala sobre a chave masculina, em que o Barba Azul é um reflexo do medo que os homens tinham do poder das mulheres na época de Perrault. Barba-azul também pode ser visto como um conto de advertência sobre uma mulher jovem e ingênua que se casa com um homem mais velho com um passado. Bluebeard também trata de fazer escolhas e enfrentar a verdade, bem como os processos internos de consciência. É deixar para trás um estado de inocência e tolice e avançar rumo à liberdade, em busca de quem realmente somos.

Os contos de fadas são uma forma de arte muito especial: embora possam remontar a centenas de anos, são sempre contemporâneos. Para as crianças, os contos de fadas ajudam a cultivar a imaginação e, como argumenta Bettelheim (1977), contribuem psicologicamente para seu crescimento interno. Para os adultos, os contos de fadas são divertidos e podem nos ajudar a entender o mundo e a nós mesmos. E, se prestarmos atenção à vida, perceberemos que não podemos ver apenas a realidade nos contos de fadas, podemos ver os contos de fadas na vida real.

O casamento de Diana e do Príncipe Charles em 1981 foi visto por pessoas ao redor do mundo como um conto de fadas que se tornou realidade. Diana foi levada à Catedral de São Paulo em uma carruagem de vidro e quando ela saiu da carruagem, ela estava usando um vestido surpreendente com uma cauda de 8 metros. Em 2011, seu filho, o príncipe William e Kate Middleton, celebrou seu próprio casamento, que foi televisionado e visto por mais de dois bilhões de pessoas ao redor do mundo, mostrando que o espírito de conto de fadas está vivo entre nós.

Os contos de fadas também podem ser vistos ao contrário: Sarah Ferguson, que havia se casado com o príncipe Andrew, foi pega tentando vender informações sobre seu ex-marido para alguns repórteres disfarçados. Ela estava em um declínio vertiginoso da graça, encarnando assim uma espécie de conto de fadas ao contrário. Em uma nota mais positiva, quem não pensou no “O patinho feio” quando Susan Boyle cantou e surpreendeu o público da televisão na Inglaterra? Ou, quando Ted Williams, que viveu como um sem-teto por vinte anos, chocou o mundo com sua “voz de ouro”?

 

Referências

BETTELHEIM, Bruno. Os usos do encantamento. Nova York: Vintage Books, 1977.

PRETO, Elizabeth. Estilística pragmática. Nova York: Columbia University Press, 2006.

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